FÉ E RACIONALIDADE
Esse tema da natureza da fé cristã é abrangente e, por isso, pode ser tratado, a partir de diversos aspectos. Neste texto ele é abordado à luz do pensamento do filósofo cristão Sören Aabye Kierkegaard. Ao citar o nome desse pensador e teólogo dinamarquês, logo se conclui que a fé cristã será analisada, aqui, a partir do aspecto intrínseco de sua irracionalidade. Devido à extensão do problema, será apresentada uma argumentação atinente, apenas, à encarnação de Deus.
É notório que Kierkegaard repudia, de forma enfática, em sua complexa literatura, a razão em favor de um comprometimento não racional, isto é, em favor da fé na graça divina. A razão, essa capacidade de a mente humana chegar a conclusões a partir de pressuposições e premissas, não alcança a Verdade que vem pela Revelação. De acordo com o teólogo suíço Emil Brunner, ela “não nos é dada para conhecer Deus, mas para conhecer o mundo”.
Por isso, Kierkegaard se posicionou contrário à tendência intelectual de teólogos e filósofos de sua época de reduzir as doutrinas do cristianismo a termos que as tornassem mais palatáveis à razão humana. Filósofos como Kant e Hegel, por exemplo, que na busca por uma teologia baseada na racionalidade, sujeitaram, em seus estudos, a consciência religiosa às categorias da razão. Eles eram dignos representantes do iluminismo, movimento intelectual do século XVIII, caracterizado pela ênfase na razão. E isso foi desastroso. Kant, por exemplo, reduziu o cristianismo a uma boa moral.
Kierkegaard reage a esses poderosos pensadores afirmando que o cristianismo é um paradoxo, isto é, sua Verdade contradiz a lógica racional e a intuição comum e só se discerne por meio da fé. A encarnação, por exemplo, “...exige que acreditemos que existe um momento em que o eterno entra na esfera temporal, assumindo as limitações da existência finita, e isso parece envolver uma impossibilidade manifesta, algo que não pode ser acomodado aos limites do pensamento e da compreensão humanos”[1].
É claro que há muita racionalidade na fé cristã. Contudo, não raro, o desenvolvimento da reflexão teológica, baseada na Revelação, atinge certas área limítrofes da racionalidade humana e salta para o inexplicável que só pode ser recebido pela fé. Como explicar, por exemplo, os milagres e a ressurreição de Jesus Cristo? Se a fé fosse meramente racional, Platão e Aristóteles teriam chegado, pela reflexão racional, a Yahweh. Mas, nem de longe, o Demiurgo e o Motor Imóvel, concepções divinas desses pensadores, aproximam-se do Criador.
A Revelação divina está além do pensamento humano. Essa
particularidade decorre da natureza transcendente da Verdade espiritual. A
Revelação trata de um mundo espiritual e só é compreendida pelo homem porque
ela lhe foi dada em um processo de acomodação às categorias humanas. É preciso
também compreender que a razão humana não é infalível e não alcança todas as
áreas da existência. Blaise Pascal, escrevendo sobre os limites da razão,
disse: “o último passo da razão é reconhecer que existe uma infinidade de
coisas que a supera"[2].
Assim, é preciso
considerar o que disse o autor do livro bíblico Hebreus: “a fé é a certeza
daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos... Sem fé é impossível
agradar a Deus, pois quem dele se aproxima precisa crer que Ele existe e
recompensa aqueles que o buscam” (11:1,6). A razão pode levar o homem até certo ponto na compreensão do mundo, mas não alcança as instâncias do mistério de Deus. A verdade
sobre o seu Ser está além do alcance da razão. Só nas instâncias
elevadas da fé se pode ter um vislumbre de sua majestade.
Antônio Maia - M. Div.
Direitos autorais reservados
[1] GARDINER, Patrick. Kierkegaard. Edições Loyola, São Paulo,
1988, p.91
[2] PASCAL, Blaise. Pensamentos. Ed Abba Press, São Paulo, 2002,
p.50
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